[Faça aqui o download do
edital do enem]
A Universidade Federal do Pará decidiu
nesta segunda-feira, dia 03 de junho, que adotará o ENEM como única
forma de acesso à instituição em 2014 (leia a
nota da instituição).
Até o ano passado, apenas as notas de redação eram usadas no ingresso. O
principal argumento é financeiro e será vantajoso (financeiramente,
diga-se) tanto para a instituição quanto para os candidatos de baixa
renda, estes não pagarão a taxa de inscrição e aquela deixará de custear
entre 3,2 e 4 milhões de reais equivalentes às isenções.
Existem inúmeros motivos para se discutir
sobre o exame seja como instrumento avaliativo de uma etapa do processo
educacional seja como instrumento de acesso ao nível superior. Alguns
já são tão clichês que pobre vai ficando esta crônica. E já vou de
antemão dizendo que não sou contra o ENEM, mas sim contra parte de seu
modelo e a maioria de seus usos.
Creio que o ENEM precise se desvincular dos vestibulares! O
exame precisa voltar às origens. Precisa ser novamente um exame para
avaliar o Ensino Médio. Ouvi exatamente isso do ex-ministro Paulo
Renato, em 2010 em entrevista ao Entre Aspas da GloboNews:
”não se deve confundir um instrumento de avaliação de um nível da
educação básica com um instrumento de acesso ao nível seguinte” (repito
de memória). Da forma como está, a avaliação da educação básica é
mascarada pela preparação dos candidatos que se estudam em cursinhos,
convênios e preparatórios online. Além disso, não avalia o estado atual
ou recente do ensino médio, pois candidatos que terminaram há 10, 15, 20
anos também realizam o exame. (É preciso lembrar que o ENEM também
serve para adquirir o Ensino Médio. Veja o artigo 16 do edital)
Outro problema é a complexidade
estrutural. Eles ainda usam aquela estrelinha (ver anexo II – pág. 37)
que me parece resultar em questões que os nossos próprios professores de
Ensino Médio (especialmente das escolas públicas) não conseguem
responder ou simplesmente entender direito. Afinal, nem sempre questões
que articulam conhecimentos de várias áreas são, de fato, compreendidas
por professores de mais de uma área. Acostumados com a
não-transversalidade muitos professores e alunos podem se deparar com
questões herméticas.
Um terceiro problema é o fato dos
conteúdos nacionais (desde antes dos PCN’s) serem regionalizados. Não é
difícil lembrar que conteúdos nacionais ignoram que os currículos são
regionalizados e que parte do que se chama nacional é, na verdade, o
conteúdo de uma região econômico e culturalmente dominante. Sem contar
que, diante das desigualdades escolares existentes no país e da razoável
facilidade de migração das regiões ‘hegemônicas’ para as afastadas, uma
prova nacional acaba por atrapalhar o acesso de alunos de regiões
periféricas às vagas próximas regionalmente e tangíveis por nivelamento.
Numa reação em cadeia, a demanda por especialistas em regiões afastadas
se manterá in continuum…
Talvez eu esteja sendo trágico demais e
talvez esteja vendo negativamente demais, mas acho que o pior de tudo no
uso do ENEM em todo o Brasil seja exatamente por causa do programa
nacional. Nas últimas décadas, tivemos avanços importantes no estudo das
mais variadas áreas do saber exatamente devido as peculiaridades
regionais. Basta pensar, por exemplo, na Etnomatemática, nas linguagens
regionais, na melhor compreensão das revoltas regenciais, nos estudos
sobre as sociedades quilombolas e indígenas, na gastronomia e na
produção de artesanato e no avanço no estudo de autores regionais de
literatura. De uma forma ou de outra, a popularização do saber acadêmico
regional se deve e muito à existência de um currículo que possibilite a
inclusão desse saber no conteúdo do Ensino Médio. Não basta dizer que a
população de tal ou qual região vai se interessar pelos saberes locais
unicamente por serem locais. A sistematização, a didatização e a
divulgação desses saberes são importantes e, no meu entendimento, a
inclusão deles num currículo aberto melhor possibilitam isso.
No caso da literatura, e agora falo de um
lugar mais específico, o conteúdo do ENEM parece deixar professores e
alunos/candidatos sem um chão ou sem ‘o’ chão necessário nesta fase de
aprendizagem. Confesso que já há algum tempo precisávamos deixar o
estudo da história da literatura (a cronologia de escolas, estilos,
obras e autores) por uma outra forma de estudar a literatura, mas não
creio que o
programa
solidifica uma outra proposta plausível de ensino neste momento. A
forma como está apresentado não encontra ressonância com nada que um
professor de ensino médio encontre nos livros didáticos atuais ou mesmo
nos conteúdos de literatura expressos nas ementas das disciplinas dos
cursos de licenciatura em Letras. Muito embora possamos ler o que está
nos livros didáticos (ou nas disciplinas da graduação em letras) sob o
prisma indicado, o esforço que isso exigirá é muito grande levando em
conta que a maioria dos professores de ensino médio vêm de uma formação
diferente da proposta apresentada, em geral são sobrecarregados de
turmas, alunos, cadernetas e planos, sem contar que normalmente dispõem
de duas ou três aulas por semana para ministrar os conteúdos de
gramática, interpretação de textos, produção de textos e literatura.
Entendo que “relacionar informações sobre concepções artísticas e
procedimentos de construção do texto literário” (H-16), por exemplo,
pode ser ensinado em aulas sobre o Barroco, mas creio que no final das
contas, diante de um programa (ideal! idealístico, idealizado) o que vai
acontecer é a velha e prática aula relacionando as características do
período e depois mostrando as tais num texto modelar (“À mesma dona
Ângela”) e talvez, talvez, uma imagem de uma igreja barroca; nem de
longe sobrará tempo para mostrar que no Brasil o Barroco assumiu um
aspecto próprio e faça os alunos “Reconhecer[em] a presença de valores
sociais e humanos atualizáveis e permanentes no patrimônio literário
nacional” (H-17).
Da leitura do edital no que se refere à
literatura pude depreender ainda que o programa ao mesmo tempo em que
diz muita coisa não diz especificamente nada; no entanto, parece dar um
bom recado do que afinal quer. Podemos perceber isso, por exemplo, na
falta de indicação de leituras mínimas.
Por mais problemáticas que possam ser as listas de “leituras
obrigatórias”, essa ausência torna o terreno já por si arenoso agora
muito movediço e, contraditoriamente, parece apontar basicamente para
duas coisas: deve-se ler o cânone e deve-se ler o cânone nacional. Um
livro recente de Regina Dalcastagne
indica que a literatura brasileira contemporânea é feito por homens,
brancos, de classe média, moradores de metrópoles e que a maioria dos
personagens protagonistas têm o mesmo perfil. Ora, esse não é mais ou
menos o perfil do nosso cânone nacional. Já faz algum tempo que se luta
por uma lista de autores e obras que respeite a diversidade no que tange
aos estudos culturais. Precisamos resgatar autores negros, autoras
(mulheres!), índios, precisamos manter a leitura de autores portugueses e
reforçar o conhecimento que temos de autores africanos de língua
portuguesa de modo inclusive a melhorar o conhecimento que temos de sua
(nossa!) história.
Claro que sou a favor da regionalização
dos conteúdos. Moderadamente, é claro. O menino de beira de rio deve
saber também subir por uma escada rolante, assim como um menino
metropolitano deve saber nadar. Afinal, não estamos amarrando elefantes
em estacas; nossas crianças devem estar preparados para um mundo em que
cada vez mais o normal é o trânsito e não a permanência. Sou a favor da
regionalização dos currículos, mas também a favor da regionalização dos
procedimentos de avaliação. A adoção do ENEM por parte da UFPA
representará um retrocesso no estudo e na sistematização, didatização e
divulgação de importantes questões regionais nas mais variadas áreas do
saber. Apesar da importância, por exemplo, do estudo das comunidades
quilombolas no Pará e da Cabanagem, dificilmente teríamos um público de
mais de 100 adolescentes num auditório pacientemente ouvindo uma
palestra se o assunto não estivesse numa pauta imediata para eles.
No caso da Literatura, (e aqui deixo de
lado os problemas acarretados pelas brigas de hegemonia belencentrista e
de formação de cânone local), no caso específico da literatura
paraense, a relativa popularização de autores como o excepcionalmente
bom romancista marajoara
Dalcídio Jurandir e de um poeta de naipe plus-ultra como
Max Martins (sem contar
Adalcinda Camarão,
Lindanor Celina e
Maria Lúcia Medeiros)
terão um retrocesso e quase irão desaparecer da formação de um público
jovem leitor local. Justo no momento em que se buscava a presença mais
representativa de autoras, e especialmente de autoras regionai, justo no
momento em que lutava-se pela presença de autores negros, e
especialmente autores negros paraenses, na lista das leituras da Ufpa.
Justo no momento em que cada vez mais precisávamos colocar as letras
paraenses no cânone nacional, especialmente fazendo a inclusão de um
Bruno de Menezes
entre os (pré-)modernistas e fazendo a devida inclusão de Belém nos
estudos sobre o modernismo no Brasil… Justo agora, essa decisão do
CONSEPE (Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPA)
representa um marco negativo (e aqui banco a
cassandra)
nos estudos de autores paraenses e se funciona como um desmotivador
para bons autores locais que há muito tempo esperam que suas obras
tenham algum reconhecimento por parte da academia, mesmo que esse
reconhecimento seja ‘apenas’ com a indicação de sua obra na lista do
vestibular. Afinal, não se pode negar que além do reconhecimento de
mérito, bons estudos e novas publicações surgem sempre que um autor é
listado nas tais leituras.
Sem uma proposta plausivelmente
didatizada (ou didatizável), preso ainda a um cânone implicitamente (não
listado como “leituras obrigatórias”) e, o pior de tudo, alijando do
processo autores regionais através de um conteúdo nacional, o programa
do ENEM ora adotado pela instituição em que leciono pode colaborar para
redistanciar a literatura de um público em formação, diminuir a
popularização de um saber scholar (acadêmico) sobre os mesmos, inibir as
publicações de livros desses autores, reduzir o interesse pela produção
de textos monográficos sobre esses autores (a médio e longo prazo) e
empobrecer a visão identitária e o conhecimento que os jovens leitores
têm de sua própria terra e de sua própria história.
Lamentavelmente, há argumentos que vão
sustentando o mal feito. Aliás, o que não falta (e não faltará) são
agentes de uma certa “intelligentsia” que prega a diversidade e
pluralidade, mas em nome da inclusão de todos, vai fazendo ‘males
menores’ a uns poucos aqui e ali. Espero que as outras instituições de
ensino superior (mesmo as privadas) melhor discutam sobre seus processos
de acesso e sobre os conteúdos programáticos de modo a manter ainda um
mínimo regional. Talvez com isso ainda seja possível por à baila o
cânone literário local e – quiçá! – tentar incluir uns outros autores
neste difícil carrossel de pedra.
Belém, 04 de junho de 2013.
Abilio Pacheco
Professor universitário, escritor de
prosa e verso, revisor de textos e organizador de antologias. Mestre em
Letras (UFPA) e doutorando em Literatura (THL-UNICAMP). Autor do romance
“
Em Despropósito (mixórdia)”, do livro de poemas “
Canto Peregrino a Jerusalém celeste”,
mais dois livros de poemas, participante e organizador de várias
antologias literárias. É membro correspondente da Academia de Letras do
Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), Cônsul dos
Poetas Del Mundo para o Estado do Pará, Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça) e faz parte da AVSPE.